Por Sergio Ribeiro
Bem, leitor, é nesse pé, infelizmente, que as
coisas estão. Porém há eventos ainda mais acachapantes.
Durante conferências públicas, certa instituição
espírita do Rio não perde tempo e vende sem pestanejar (e sem vergonha)
tômbolas e rifas para os presentes. Além de ilegal e repetitiva do que fazem os
católicos, a prática é perturbadora do clima espiritual dessas horas e, ainda,
constrangedora tanto para o público quanto para o orador. Mas pior é ler
artigos de quem se julga com autoridade para orientar, inclusive com livros, o
movimento espírita, defendendo a prática do jogo do bingo nas instituições, a fim
de angariar recursos. É lastimável tamanha irresponsabilidade ética e
religiosa. E por que não roleta, bacará, vinte-e-um, campista? Todos geram
cornucópias de cruzeiros e dólares.
Triste, tristíssimo atalho moral e espiritual.
Continuemos. Certa fraternidade espírita se
comprometia a abrir possibilidades para as pessoas vencerem na vida através do
diagnóstico mediúnico do olhar. Consulta paga, é obvio... No local do antigo
Jardim Zoológico do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, foi montada, em 1973, a Feira
da Primavera.
Conhecida instituição, genuinamente kardecista,
armou a sua barraca. Logo na frente, alinhou uma série de garrafas cujas doses
eram vendidas em benefício da instituição. Conteúdo: pinga, cachaça. Olhe o
leitor que eu disse tratar-se de instituição genuinamente kardecista...
Desculpa apresentada quando um verdadeiro espírita estranhou aquele comércio:
as garrafas foram doadas...
Se fosse para vender livro, vá lá; mas pastel,
banana, torta, linguiça... ah, essa não me desce na garganta. Talvez seja
fastio. Fastio principalmente desse alimento putrescente que é o miasma de
todos os atalhos. O Reformador de dezembro de 1966, p. 266, publicou valiosa
nota condenando os bailes públicos em prol do espiritismo. Vale a pena também
reler o artigo estampado na mesma revista de junho de 1948, p. 142, sobre
festividades, músicas e bailes nas associações espíritas. Avalio, porém, como a
melhor advertência, aquela que se contém na mensagem de Djalma Montenegro de
Farias, psicografada por Divaldo Pereira Franco e inserida no Reformador de
junho de 1960, pp. 135-136, sob o título "Templo Espírita". Copio
dois parágrafos:
Lentamente, vai-se generalizando nos centros
espíritas uma prática que é, positivamente, afrontosa ao lema que ostentamos em
memória do Codificador do espiritismo: "Fora da Caridade não há
Salvação".
Desejamos referir-nos aos chamados movimentos
financeiros, tais como: apelos de dinheiro, venda de rifas, brincadeiras
cômicas para aquisição de moedas, concomitante ao serviço de difusão doutrinária,
em casas de pregação e assistência.
Nesse sentido recordemos a linguagem vibrante de
Jesus aos vendilhões do Templo, em Jerusalém, que transformavam o recinto de
oração em balcões de comércio.
Conduta Espírita, André Luiz recomenda, no
capítulo 14: "Sustentar a dignidade espírita diante das assembleias,
abstendo-se de historietas impróprias ou anedotas reprováveis."
Mas existe outro tipo de promoção, já bem ampla
nas hostes espíritas, que extrapola qualquer diretriz do bom senso. É a
instituição de dias comemorativos, a exemplo do que faz a Igreja Católica com a
distribuição dos santos pelo calendário, a fim de serem efusivamente
festejados. Não estou me referindo às datas de fundação das entidades, nem as
rememorativas de algum acontecimento inquestionavelmente importante, do ponto
de vista histórico, como a reencarnação de Allan Kardec, o lançamento de O
Livro dos Espíritos, a descida de Jesus à Terra, etc. Isso é outra coisa.
Refiro-me às extravagâncias que não passam de meras bajulações ou marcos estapafúrdios.
Por exemplo: entidades, consideradas de bom conhecimento doutrinário, já
propuseram, e algumas comemoram, religiosamente, o Dia da Mocidade Espírita (14
de
maio), o Dia da Saudade (5 de outubro, para
reverenciar a memória dos médiuns), Dia da Doutrina Espírita (31 de março,
transformado em lei estadual), Dia do Médium (30 de maio, este para homenagear
os que ainda estão encarnados, e cujo documento foi-me presenteado pelo Divaldo
Pereira Franco, então horrorizado com a ideia; e há também o Mês do Médium, que
é em agosto, com 30 dias de puxa-saquismo), Dia do Espírita (3 de outubro; e eu
que pensei que o espírita fosse espírita todos os dias ... ) e, para encerrar
esse folclórico calendário, o Dia da Caridade (19 de julho, transformado na lei
federal nº 5036, de 4.7.1966). Este último é hilariante e muito digno das
religiões que instituíram cronologia para a salvação, mas, sem dúvida, há de
ser repudiado pelos espíritas sérios. Caridade com dia marcado? Onde já se viu
isso? Caridade é para ser pensada e praticada em qualquer dia, a qualquer hora,
sempre que for possível e desejável. E se se tratar apenas de data evocativa,
também de nada vale, pois a evocação desse dever é permanente, como o é a do
próprio bem. Já pensaram na hipótese de se criar o Dia do Bem, para que nos
lembremos de sermos bons? Por favor, freiem a imaginação e poupem-me o riso (ou
o pranto!).
No remate, a advertência de ouro feita por quem
tinha verdadeira autoridade - Léon Denis:
O Espiritismo propagou-se, invadiu o mundo. Desprezado,
repelido ao começo, acabou por atrair a atenção e despertar interesse. Todos
quantos se não imobilizavam na esfera do preconceito e da rotina e o abordaram
desassombradamente, foram por ele conquistados. Agora penetra por toda a parte,
instala-se em todas as mesas, tem ingresso em todos os lares. À sua voz, as
velhas fortalezas seculares - a Ciência e a própria Igreja, até aqui
hermeticamente aferrolhadas - arrasam suas muralhas e entreabrem suas portas.
Dentro em pouco se imporá como soberano.
Que traz ele consigo? Será sempre e por toda a
parte a verdade, a luz e a esperança? Ao lado das consolações que caem na alma
como o orvalho sobre a flor, de par com o jorro de luz que dissipa as angústias
do investigador e ilumina a rota, não haverá também uma parte de erros e
decepções?
O Espiritismo será o que o fizerem os homens.
Similia similibus! Ao contato da humanidade as mais altas verdades às vezes se
desnaturam e obscurecem. Podem constituir-se uma fonte de abusos. A gota de
chuva, conforme o lugar onde cai, continua sendo pérola ou se transforma em
lodo.
Fonte: Item 28 de ‘O Atalho -
Análise Crítica do Movimento Espírita’ por Luciano dos Anjos