sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Aracati

ARACATI – I (Colatina – ES, 1991) Ruas desertas, calçadas entristecidas, Casas sujas e inacabadas, Roladeiras fazendo alaridos Mulheres por seus maridos maltratadas. Homens fazendo redes de pesca Meninos jogando futebol Sábado à noite tem festa Na fazenda caracol. Cata-vento, vento, vento. Arraias pairando no ar, Sentir saudades ainda é tempo Do Jaguaribe Rio-Mar. Carnaval em fevereiro, Caranguejo vai “brincar” Fui eu que vi primeiro Caranguejo a desovar Que saudades do manguezal, Aratu, caranguejo e companhia, A pessoa que te fez mal, Ainda há de pagar um dia. Filhos ilustres tu tens, Deles só restam os nomes, Não vou lhes dar parabéns, Pois sei que deles tens fome. Dunas brancas a bailar Nos olhos do ancião, Não é miragem é a vontade de chegar No topo do coração. Canoa quebrada é teu nome De coração e de batismo, Teu dia-a-dia me consome No formal e no nudismo. Zé Melancia era um poeta Que cantava a sua gente, Sem rodeio e sem aresta, Pois ele era diferente. O trem que ia passar Nunca se ouviu o seu apito, O progresso que ia gerar, Não gerou por falta de um grito. Navios transportando sal, Velas brancas que saudade, O cais do porto hoje é um caos, Lembranças na memória e nas telas no museu. Tu foste primeira a fabricar O charque que hoje não tens, Teus filhos vivem a vomitar CHARQUE, NAVIO, PORTO SAL e TREM. ARACATI – II Meu amorzinho ta sereno Esconde–esconde não via, Chafariz abandonado Lá brincava noite e dia, Cacos de vidros e arame farpado Eu pisava e não sentia. Que saudade Zé Batata De tuas presepadas, Depois da missa ia assistir As tuas diabadas, Queria eu corrigir… Esses teus atos macabros. Tanque Salgado sem sal, Férias que não passei, Areia branca tu tens Nas estradas que não andei, Queria eu ser teu refém No sonho que não sonhei. Santarém és rua ou és bairro? Da cidade que não vivi Juventude clube só no nome Dos bailes que eu curtir Mulheres que me consomem Do velho bairro da matriz. Castelo abandonado Com morcego e sem vampiro, Seus quartos viraram motel Para homens e raparigas, Casais se desquitando no papel E mulheres tornando-se meretriz. Marezinha sem maré Pedra sem chapéu Irmãos matando irmãos Mulheres tirando o véu, Cristãos eu não sei se são, Mas, Deus desejou paz na terra e nos céus. São Sebastião ainda se lembra Do velame que quebrei, Esse é teu cognome, De roda gigante rodei, Faria Brito com o nome Passou por cima da lei. Beirada de água doce Parece mais um igarapé, Os moradores do Pedregal São fugitivos da maré, Tua despedida foi igual A história de Noé. Queria eu ser um poeta Pra contar a tua história, Dos versos que nunca fiz, Mas tá gravado na memória, Pois só assim serei feliz, Em divulgar tua história. ARACATI – III Nunca te vi engatinhando Sobre penas de pavão, Mulheres e homens chorando Por causa da devastação Sei cantar e vou cantando A tua luz e escuridão Estrangeiros na mesa da cozinha Altar-mor para os teus fariseus, Nativos almoçando na vizinha, Desamparaste os filhos teus, Ruas sujas nas tuas narinas, Os teus filhos, já não são teus. A fábrica que calou a sirene, O sabão que não lava roupa, Os teus filhos de tanta fome tremem, Não comem sequer uma sopa, E nos palanques vão dizendo, Vou botar dentes em tua boca. Casarões, teu destino é o abandono! Nos olhos de quem não quer ver Se fosse obra faraônica Teu nome e tua cara apareciam na TV, Só nos resta a peste bubônica Dos ratos que vão nos morder. Cruz das almas que não existe Das cordas da amargura, Pescoços que não resistiram Os teus apertos e quebraduras, Mãos que mataram grevistas Nas velhas ditaduras. Igrejas sagradas e benditas Que sempre lá ia rezar, Saudade do colégio Marista Que todo Sábado ia jogar, Cavalos velozes na pista É nesse que vou apostar. Maloca que não tem índio, Gruta com castiçais no altar, Nossa Senhora de Lourdes é ainda A padroeira do lugar, Tu és tão pura e tão linda Como canção de ninar. Rio seco o Jaguaribe Que nunca o vi secar, Enchentes da noite para o dia, Não tinha como evitar, De fome e doença morria O povo do teu lugar. Não és coluna e sim pirâmide! De caveira samba e mulata, Zumbi vencendo as ganâncias Dos velhos punhais de prata, Festejam o povo chorando Salve, salve a nossa raça.

O que é a pequena burguesia? | CONVERGÊNCIA



Alvaro Bianchi

As noções de pequena-burguesia e classe média necessitam um tratamento teórico mais detalhado. Para a sociologia de inspiração weberiana as classes sociais são definidas tomando em consideração as oportunidades de vida permitidas pela posse de bens (WEBER, 2004, v. 2, p. 176). Este conceito se afirmou fortemente no senso comum, para o qual classe é igual a renda ou patrimônio. Para Marx e Engels, entretanto, as determinações das classes sociais não se encontram primeiramente no “mercado de bens ou trabalho”, elas estão na esfera da produção de riquezas.

Nunca é demais lembrar que Marx escreveu no século XIX quando o processo de superação das antigas formas sociais feudais ainda não havia chegado a seu final, particularmente na Alemanha sua terra natal. Trabalhando com o material empírico fornecido pelo desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra, na qual a grande indústria se encontrava em processo de generalização, pôde antecipar tendências que apenas assomavam no continente europeu. Foi essa perspectiva europeia e oitocentista, que fez com que Marx concebesse o surgimento da pequena burguesia no contexto da transição do feudalismo ao capitalismo.

Na historiografia marxista tornou-se muito conhecido o debate entre Maurice Dobb e Paul Sweezy a respeito dessa transição. Considerando o modo de produção feudal de maneira estática, Sweezy argumentou que a transição havia tido como “agente motor” os enclaves urbanos e a expansão do comércio de longa distância entre estes, a qual teria dissolvido a economia rural feudal (SWEEZY, 1977, p. 41-43). Dobb, por sua vez, acreditava que as forças dinâmicas da transição deveriam ser procuradas no interior da economia agrária, cujo desenvolvimento teria provocado a diferenciação do campesinato e a emergência do pequeno produtor (DOBB, 1977, p. 60-62). Como argumentou John Merrington (1977), o feudalismo na Europa ocidental não era uma economia simplesmente rural e sim uma na qual a economia agrária encontrava-se fortemente imbricada com a produção e as trocas urbanas. Essa concepção mais abrangente e plástica da economia feudal é a que parece predominar no pensamento de Marx, o qual tende a ver a transição ao capitalismo como uma complexa trama de processos que se verificavam tanto no âmbito da economia rural como na vida urbana.

A pequena burguesia como ator social

O uso de variadas expressões para designar os pequenos comerciantes e os pequenos produtores independentes rurais e urbanos atestam essa visão abrangente e plástica. Marx e Engels utilizam três palavras diferentes em alemão, as quais com frequência são traduzidas unicamente e de maneira imprecisa por pequena burguesia: Kleinbürgerschaft, Mittelstand e Pfahlbürgerschaft. Apenas Kleinbürgerschaft tem o sentido exato de pequena burguesia. Mittelstand significa exatamente os estratos médios da sociedade e remete evidentemente aos Stände, os estamentos sociais do antigo regime predominantes ainda em muitas regiões da Alemanha na primeira metade do século XIX. A terceira expressão, Pfahlbürgerschaft, é usada pouquíssimas vezes e literalmente significa “burguesia de paliçada”, ou seja, os habitantes que residiam entre os muros do castelo medieval a paliçada que o circundava, os quais, geralmente, viviam do comércio. O burguês de paliçada era um pequeno comerciante na Idade Média. Esta era uma forma social da Europa do Leste e do Norte, e por essa razão foi utilizada por Marx e Engels geralmente com referência ao contexto alemão. Quando fazem referência ao processo geral de transformação das corporações medievais esses autores utilizam as palavras Kleinbürgerschaft e Mittelstand.

Em A ideologia alemã esses autores utilizam a noção de pequena-burguesia (Kleinbürgerschaft) a qual se distingue da grande burguesia (die große Bourgeoisie ou großbürgerlich). O nascimento dessa pequena burguesia teria ocorrido no interior das corporações medievais, ou seja, no desenvolvimento e na posterior decomposição das formas sociais tipicamente feudais, particularmente as corporações de ofício. Assim,

“O comércio e a manufatura criaram a grande burguesia (die große Bourgeoisie), enquanto nas corporações concentrava-se a pequena burguesia [die Kleinbürgerschaft], que então já não dominava mais nas cidades como antes, mas tinha de se curvar ao domínio dos grandes comerciantes e manufatureiros. Daí a decadência das corporações, tão logo entraram em contato com a manufatura.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 57)

Esta origem da pequena burguesia no interior das corporações de ofício teria estabelecido uma importante distinção espacial. A burguesia nascente, proveniente do desenvolvimento do comércio encontraria seu lugar nas “cidades marítimas”, as quais “tornaram-se em certa medida aburguesadas e civilizadas”. Por sua vez, “a maioria da pequena burguesia [die größte Kleinbürgerei]” teria se concentrado “nas cidades fabris [den Fabrikstädten]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 59). Marx e Engels consideravam que neste o estágio as novas relações sociais nascentes se desenvolviam sob o solo das forças produtivas e culturais previamente existentes. O velho coexistia com o novo; novas formas sociais se revelavam ao mesmo tempo que as antigas ainda existiam.

O Manifesto comunista não é tão claro a respeito da origem da burguesia e da pequena burguesia. A noção de pequeno burguês [der Kleinbürger] parece ser utilizada para nomear os pequenos comerciantes que, na periferia do sistema feudal, mas a ele integrados, deram origem a uma nova burguesia. Assim, o “servo, em plena servidão, conseguia tornar-se membro da comuna, da mesma forma que o pequeno burguês [der Kleinbürger], sob o jugo do absolutismo feudal, elevava-se à categoria de burguês” (MARX; ENGELS, 1998, p. 50). Mas nesse texto, quando fizeram referencia aos artesãos que no processo de dissolução das corporações deram lugar ao pequeno burguês, a noção utilizada não foi a de Kleinbürger mas a de Mittelstand, uma noção ausente em A ideologia alemã. Era, assim, exposto sinteticamente o processo de dissolução das corporações, de transformação da oficina em manufatura e de substituição dos mestres das corporações pela pequena burguesia: “A camada média industrial [den industriellen Mittelstand] suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações desapareceu diante da divisão do trabalho dentro da própria oficina” (MARX; ENGELS, 1998, p. 41).[1]

Em outras passagens essas camadas médias assumem um sentido mais amplo e passam a incorporar “pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses” (MARX; ENGELS, 1998, p. 49). O que parece sobressair dessas diferentes noções é que, geralmente Marx diferenciava a pequena burguesia da classe dos camponeses e que ambas fariam parte, juntamente com outros contingentes sociais, das camadas ou estratos médios da sociedade. É o que dá a entender também uma passagem escrita poucos anos mais tarde, em A luta de classes na França, na qual fez referência aos “estratos intermediários da sociedade burguesa, a pequena burguesia e a classe camponesa [die mittleren Schichten der bürgerlichen Gesellschaft, Kleinbürgertum und Bauernklasse]” (MARX, 2012, p. 48).

Essa tensão entre os conceitos de Kleinbürgerschaft e Mittelstand revela as múltiplas origens que Marx e Engels atribuíam às novas relações sociais tipicamente capitalistas. Estas teriam se constituído por meio de uma complexa confluência histórica de formas sociais que se encontravam tanto dentro da vida social tipicamente feudal, como fora desta ou à sua margem. Em muitos casos, como nos importantes centros comerciais da Alemanha e do Norte da Itália, a pequena burguesia comercial e industrial possuíam origens bastante distintas. Em outros, uma origem comum as unia imediatamente.

Esse processo se desenvolveu ao longo de séculos de maneira espacialmente diferenciada. As imagens mitológicas da Idade Média como idade das trevas, construída pela historiografia burguesa do final do século XIX, são uma barreira epistemológica que impede o reconhecimento da intensa dinâmica social existente nos centros urbanos da Baixa Idade Média e das profundas mudanças provocadas pela revolução agrícola na Inglaterra do século XVI.[2] Em O Capital as várias formas de desenvolvimento da indústrias moderna são tratadas de maneira nuançada, demonstrando a inexistência de uma única via de desenvolvimento econômico e social.

Liquidação e resilência

Embora as diversas e complexas origens sociais essas camadas médias ou estratos intermediários se caracterizam sempre, no texto de Marx, pela posse ou o controle de pequenas parcelas dos meios de produção e pela exploração da própria força de trabalho, daquela dos membros do grupo familiar ou de um pequeno número de trabalhadores associados. O destina da pequena burguesia está fortemente associado às transformações sociais decorrentes dos processos de centralização e concentração do capital, as quais representariam uma ameaça crescente sobre a pequena burguesia: “A supremacia industrial e política da burguesia ameaça à pequena burguesia das cidades [Pfahlbürgerschaft] de destruição certa – de um lado, pela concentração dos capitais, de outro, pelo desenvolvimento de um proletariado revolucionário” (MARX; ENGELS, 1998, p. 65)[3]

Analisando os processos sociais que se verificavam tanto na Inglaterra como na Europa continental, Marx e Engels acreditaram que o desenvolvimento de novas relações sociais empurraria os membros das camadas médias em direção ao contingente social do proletariado:

“As camadas inferiores da classe média de outrora, os pequenos industriais, pequenos comerciantes e pessoas que possuem rendas [rentiers], artesãos e camponeses [Die bisherigen kleinen Mittelstände, die kleinen Industriellen, Kaufleute und Rentiers, die Handwerker und Bauern], caem nas fileiras do proletariado: uns porque seus pequenos capitais, não lhes permitindo empregar os processos da grande indústria, sucumbiram na concorrência com os grandes capitalistas, outros porque sua habilidade profissional é depreciada pelos novos métodos de produção.” (MARX; ENGELS, 1998, p. 47)

Mas o resultado desse processo histórico foi mais desigual do que estes autores previram. Nos países capitalistas centrais o desenvolvimento da indústria moderna praticamente liquidou os pequenos industriais e os artesãos, camadas sociais que se tornaram cada vez mais residuais. Mas o mesmo não pode ser dito dos camponeses e dos pequenos comerciantes, grupos sociais que revelaram em alguns países uma resiliência muito superior à esperada.

Referências bibliográficas

BRENNER, Robert. Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe. Past & Present, n. 70, p. 30-75, 1976.

DOBB, Maurice. Uma réplica. In: HILTON, Rodney et al. A transição do feudalismo para o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 57-66.

MARX, Karl. As lutas de classes na França: de 1848 a 1850. São Paulo: Boitempo, 2012.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.

______. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.

MERRINGTON, John. A cidade e o campo na transição para o capitalismo. In: HILTON, Rodney et al. A transição do feudalismo para o capitalismno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 171-196.

SWEEZY, Paul. Uma crítica. In: HILTON, Rodney et al. A transição do feudalismo para o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. p. 33-56.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 2004.

[1] Sempre que julgamos necessário para tornar mais preciso o texto modificamos a tradução citada.

[2] O reconhecimento dos efeitos dessa revolução agrícola no desenvolvimento do capitalismo industrial é a base da inovadora abordagem de Robert Brenner (1976) que revolucionou os estudos sobre a transição do feudalismo para o capitalismo.

[3] Como Marx deixará claro em O capital, tratam-se de dois processos e não apenas um: a centralização dos capitais, resultado da competição entre diversos capitalistas, e a concentração de capitais, resultado da expropriação da força de trabalho. Esta distinção entre concentração e centralização não se encontrava ainda desenvolvida em 1848, quando Marx e Engels redigem o Manifesto comunista.

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