Por Sérgio Ribeiro
É comum ouvirmos essa frase: "A alma dorme na pedra, sonha no
vegetal, agita-se no animal e acorda no homem", cuja autoria é atribuída a
Léon Denis. Só que, curiosamente, até hoje ninguém nos provou que ele tenha
dito exatamente isso. Mas, na busca em que nos empenhamos para encontrá-la,
acabamos por nos deparar com a frase verdadeira, vejamo-la:
Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda,
conhece-se, possui-se e torna-se consciente; a partir daí, o progresso, de
alguma sorte fatal nas formas inferiores da Natureza, só se pode realizar pelo
acordo da vontade humana com as leis Eternas. (DENIS, 1989, p. 123). (grifo
nosso).
Obviamente que, mesmo em sentido figurado, dormir na planta não é o
mesmo que dormir na pedra, que é o assunto que ainda causa polêmica em nosso
meio. Bom, a questão é saber se o sucessor do codificador contrariou aquilo que
foi dito por ele. Particularmente, acreditamos que não.
Inicialmente recorreremos ao que ele, Kardec, disse na Introdução da
primeira edição de O Livro dos Espíritos:
Qualquer que seja, é um fato que não se pode contestar, pois é um
resultado de observação, é que os seres orgânicos têm em si uma força íntima
que produz o fenômeno da vida, enquanto que essa força existe; que a vida
material é comum a todos os seres orgânicos e que ela é independente da
inteligência e do pensamento: que a inteligência e o pensamento são faculdades
próprias de certas espécies orgânicas; enfim, que entre as espécies orgânicas
dotadas de inteligência e de pensamento, há uma dotada de um senso moral
especial que lhe dá incontestável superioridade sobre as outras, é a espécie
humana.
Nós chamamos enfim inteligência animal o princípio intelectual comum aos
diversos graus nos homens e nos animais, independente do princípio vital, e
cuja fonte nos é desconhecida. (KARDEC, 2004, p. 3). (grifo nosso).
Isso foi necessário apenas para verificar que, já na primeira edição desse
livro, Kardec, sem meias palavras, disse que “a inteligência e o pensamento são
faculdades próprias de certas espécies orgânicas”, definindo-as dessa forma:
Os seres orgânicos são os que têm em si uma fonte de atividade íntima
que lhes dá a vida. Nascem, crescem, reproduzem-se por si mesmos e morrem. São
providos de órgãos especiais para a execução dos diferentes atos da vida,
órgãos esses apropriados às necessidades que a conservação própria lhes impõe.
Nessa classe estão compreendidos os homens, os animais e as plantas. (KARDEC,
1987, p. 65) (grifo nosso).
Então, segundo Kardec, podemos classificar os seres orgânicos em homens,
animais e plantas. Quando, no livro A Gênese, ele estuda o Instinto e a
Inteligência (Capítulo III), faz diversas considerações, nas quais vamos
encontrar alguma coisa para dirimir possíveis dúvidas. Diz lá:
O instinto é a força oculta que solicita os seres orgânicos a atos
espontâneos e involuntários, tendo em vista a conservação deles. Nos atos
instintivos não há reflexão, nem combinação, nem premeditação. É assim que a
planta procura o ar, se volta para a luz, dirige suas raízes para a água e para
a terra nutriente; que a flor se abre e fecha alternativamente, conforme se lhe
faz necessário; que as plantas trepadeiras se enroscam em torno daquilo que
lhes serve de apoio, ou se lhe agarram com as gavinhas. É pelo instinto que os
animais são avisados do que lhes convém ou prejudica; que buscam, conforme a
estação, os climas propícios; que constroem, sem ensino prévio, com mais ou menos
arte, segundo as espécies, leitos macios e abrigos para as suas progênies,
armadilhas para apanhar a presa de que se nutrem; que manejam destramente as
armas ofensivas e defensivas de que são providos; que os sexos se aproximam;
que a mãe choca os filhos e que estes procuram o seio materno. No homem, só em
começo da vida o instinto domina com exclusividade; é por instinto que a
criança faz os primeiros movimentos, que toma o alimento, que grita para
exprimir as suas necessidades, que imita o som da voz, que tenta falar e andar.
No próprio adulto, certos atos são instintivos, tais como os movimentos
espontâneos para evitar um risco, para fugir a um perigo, para manter o
equilíbrio do corpo; tais ainda o piscar das pálpebras para moderar o brilho da
luz, o abrir maquinal da boca para respirar, etc. (KARDEC, 1993, pp. 64-65).
(grifo nosso).
Nessa fala de Kardec fica claro que ele admite o instinto nas plantas,
nos animais e nos homens. Mas, “o que tem a ver instinto com inteligência?”,
poderia alguém nos perguntar. Pois bem, essa dúvida foi respondida pelos
espíritos que afirmaram que o instinto é uma espécie de inteligência, uma
inteligência não racional (resposta à pergunta 73). Um pouco mais à frente, ao
comentar a resposta à pergunta 75, o codificador explica:
O instinto é uma inteligência rudimentar, que difere da inteligência
propriamente dita, em que suas manifestações são quase sempre espontâneas, ao
passo que as da inteligência resultam de uma combinação e de um ato deliberado.
O instinto varia em suas manifestações, conforme às espécies e às suas
necessidades. Nos seres que têm a consciência e a percepção das coisas
exteriores, ele se alia à inteligência, isto é, à vontade e à liberdade.
(KARDEC, 1987, p. 69). (grifo nosso).
Portanto, pela ordem, as plantas, os animais e os homens possuem o
princípio inteligente, variando apenas quanto ao grau de sua manifestação.
Entretanto, até agora, não houve nada relacionado aos minerais terem esse
princípio, ou que o mesmo tenha, por alguma vez, estagiado em seres
inorgânicos. Coisa difícil de entender, já que esses seres não possuem
vitalidade; portanto, não estão sujeitos ao “nascer-crescer-morrer”, ciclo
indispensável para que ocorra o progresso intelectual desse princípio.
O esclarecimento a respeito do instinto de conservação, vai nos ajudar a
clarear mais ainda essa questão, leiamos em O Livro dos Espíritos:
702. É lei da Natureza o instinto de conservação?
“Sem dúvida. Todos os seres vivos o possuem, qualquer que seja o grau de
sua inteligência. Nuns, é puramente maquinal, raciocinado em outros.”
703. Com que fim outorgou Deus a todos os seres vivos o instinto de
conservação?
“Porque todos têm que concorrer para cumprimento dos desígnios da
Providência. Por isso foi que Deus lhes deu a necessidade de viver. Acresce que
a vida é necessária ao aperfeiçoamento dos seres. Eles o sentem
instintivamente, sem disso se aperceberem.”
728. É lei da Natureza a destruição?
“Preciso é que tudo se destrua para renascer e se regenerar. Porque, o
que chamais destruição não passa de uma transformação, que tem por fim a
renovação e melhoria dos seres vivos.”
Do que concluímos que todos os seres vivos possuem a inteligência em
algum grau, que a vida é necessária a seu progresso e que a destruição é
necessária para que isso ocorra; então, no que concerne aos minerais,
acreditamos que nada disso se aplica.
Voltando ao livro A Gênese, iremos encontrar uma fala de Kardec, que, a
nosso ver, põe um ponto final sobre como ele via o assunto. Vejamos, quando ele
fala da União do princípio espiritual e da matéria, no capítulo XI, item 10:
Devendo a matéria ser o objeto de trabalho do Espírito, para o
desenvolvimento de suas faculdades, era necessário que pudesse atuar sobre ela,
por isso veio habitá-la, como o lenhador habita a floresta. Devendo ser a
matéria, ao mesmo tempo, o objetivo e o instrumento de trabalho, Deus, em lugar
de unir o Espírito à pedra rígida, criou, para seu uso, corpos organizados;
flexíveis, capazes de receber todos os impulsos de sua vontade, e de se prestar
a todos os movimentos.
O corpo é, pois, ao mesmo tempo, o envoltório e o instrumento do
Espírito, e à medida que este adquire novas aptidões, ele reveste um envoltório
apropriado ao novo gênero de trabalho que deve realizar, como se dá a um
obreiro ferramentas menos grosseiras à medida que ele seja capaz de fazer uma
obra mais cuidada. (KARDEC, 1993, pp. 182-183). (grifo nosso).
Pelo que podemos deduzir dessa fala, não há como admitir que o princípio
inteligente tenha se estagiado nos minerais, a não ser contrariando o que aqui
foi dito por Kardec.
Na explicação da resposta à pergunta 71 (LE), o codificador faz a
seguinte consideração:
A inteligência é uma faculdade especial, própria de certas classes de
seres orgânicos e que lhes dá, com o pensamento, a vontade de agir, a
consciência de sua existência e de sua individualidade, assim como os meios de
estabelecer intercâmbio com o mundo exterior e de prover às suas necessidades.
Podem distinguir-se assim: 1º. - os seres inanimados, constituídos de
matéria, sem vitalidade nem inteligência, que são os corpos brutos; 2º. - os
seres animados não pensantes, formados de matéria e dotados de vitalidade, mas
desprovidos de inteligência; 3º. - os seres animados pensantes, formados de
matéria, dotados de vitalidade e tendo a mais um princípio inteligente que lhes
dá a faculdade de pensar. (KARDEC, 1997,.p. 68).
Classificam-se, portanto, os reinos da natureza em três: o mineral, o
vegetal e o animal, conforme essa ordem citada por Kardec. Assim, fica claro,
pelo que ele coloca, que o reino mineral não tem vitalidade nem inteligência, o
que também se confirma com: “A matéria inerte, que constitui o reino mineral,
não tem senão uma força mecânica” (KARDEC, 1987, p. 245). Buscando-se também a
questão 136a, veremos que a hipótese do princípio inteligente no mineral e de
todo improvável, porquanto: “A vida orgânica pode animar um corpo sem alma, mas
a alma não pode habitar um corpo privado de vida orgânica” (KARDEC, 1987, p.
91). (grifos nossos).
Conforme descobrimos, essa hipótese está nos livros No Mundo Maior e
Evolução em Dois Mundos, da série André Luiz. Não seremos nós quem irá
contestar o autor; entretanto, talvez por ousadia, questionamos a seguinte fala
dele: “A crisálida de consciência, que reside no cristal a rolar na corrente do
rio, aí se acha em processo, libertatório;...” (XAVIER, 1984, p. 45). Como um
cristal, que rola no leito de um rio, “morre” para que a crisálida, que
possivelmente esteja nele, passe para o estágio evolutivo seguinte? Quando nós
usamos esses cristais, incrustando-os nas paredes de nossas casas, a crisálida
ficaria ali presa indefinidamente? Devemos proteger os cristais como estamos
querendo fazer em relação aos seres vivos dos outros reinos da natureza?
É por essas coisas que temos enorme dificuldade em aceitar tal premissa,
que, também, se não estivermos enganados, não é aquela que encontramos nas
obras da codificação.
Dessa forma nos alinhamos com outros autores, já consagrados no meio
Espírita, que já responderam à pergunta, que dá título a esse nosso texto, com
um sonoro não.
Paulo da Silva Neto Sobrinho
Artigo originalmente publicado na Revista Espiritismo e Ciência, Ano 4,
nº 46, pp. 29-32 e reproduzido com a autorização do autor
Referências bibliográficas:
DENIS, L. O Problema do Ser, do Destino e da Dor, Rio de Janeiro: FEB,
1989.
KARDEC, A. A Gênese, Araras-SP: IDE, 1993.KARDEC, A. O Livro dos
Espíritos – Primeira edição de 1857, Itaim Bibi, SP: Ipece, 2004.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos, Araras-SP: IDE, 1987.
XAVIER, F. C. Evolução em Dois Mundos, Rio de Janeiro: FEB, 1987.
XAVIER, F. C. No Mundo Maior, Rio de Janeiro: FEB, 1984.
NETO, P. A alma dos animais: estágio anterior da alma humana?,
Divinópolis-MG: Panorama Espírita, 2006.
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