Por Sérgio Ribeiro
Sem a formação doutrinária, não teremos um movimento
espírita coeso e coerente. E, sem coesão e coerência, não teremos Espiritismo.
Essa a razão por que os Espíritos Superiores confiaram às mãos de Kardec o
pesado trabalho da Codificação. Kardec teve de arcar, sozinho, com a execução
dessa obra gigantesca. Só ele estava em condições de realizá-la.
Depois de Kardec, o que vimos? Léon Denis foi o
único dos seus discípulos que conseguiu manter-se à altura do mestre,
contribuindo vigorosamente para a consolidação da Doutrina. Era, aparentemente,
o menos indicado. Não tinha a formação cultural de Kardec, residia na
província, não convivera com ele, mas soubera compreender a posição
metodológica do Espiritismo e não a confundia com os desvarios espiritualistas
da época. Depois de Denis, foi o dilúvio.
A Revista Espírita virou um saco de gatos. A
Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas naufragou em águas turvas. A Ciência
e a Filosofia Espíritas ficaram esquecidas. O aspecto religioso da Doutrina
transviou-se na ignorância e no fanatismo. Os sucessores de Kardec fracassaram
inteiramente na manutenção da chama espírita, na França. E, quando a Arvore do
Evangelho foi transplantada para o Brasil, segundo a expressão de Humberto de
Campos, veio carregada de parasitas mortais que, ao invés de extirpar, tratamos
de cultivar e aumentar com as pragas da terra. Tudo isso por quê? Por falta
pura e simples de formação doutrinária. A prova está aí, bem visível, no
fluidismo e no obscurantismo que dominam o nosso movimento no Brasil e no
Mundo.
Os poucos estudiosos, que se aprofundaram no estudo
de Kardec, vivem como náufragos num mar tempestuoso, lutando, sem cessar, com
os mesmos destroços de sempre. Não há estudo sistemático e sério da Doutrina. E
o que é mais grave, há evidente sintoma de fascinação das trevas, em vastos
setores representativos que, por incrível que pareça, combatem por todos os
meios o desenvolvimento da cultura espírita.
Enquanto não compreendermos que Espiritismo é
cultura, as tentativas de unificação do nosso movimento não darão resultados
reais. Darão aproximações arrepiadas de conflitos, aumento quantitativo de
adeptos ineptos, estimulação perigosa de messianismos individuais e de grupos.
Flamarion, que nunca entendeu realmente a posição de Kardec, e chegou a dizer
que ele fez obra um tanto pessoal, como se vê no seu famoso discurso ao pé do
túmulo, teve, entretanto, uma intuição feliz quando o chamou de bom senso
encarnado. Esse bom senso é que nos falta. Parece haver se desencarnado com
Kardec, e volatizado com Denis.
Hoje, estamos na era do contra-senso. Os mesmos
órgãos de divulgação doutrinária que pregam o obscurantismo exibem pavoneios de
erudição personalista, em nome de uma cultura inexistente. Porque cultura não é
erudição, livros empilhados nas estantes, fichário em ordem para consultas
ocasionais. Cultura è assimilação de conhecimentos e bom senso em ação. O que
fazer diante dessa situação? Cuidar da formação espírita das novas gerações,
sem esquecer a alfabetização de adultos. Mobral: esse o recurso. Temos de
organizar o Mobral do Espírito. E começar tudo de novo, pelas primeiras letras.
Mas, isso em conjunto, agrupando elementos capazes, de mente arejada e coração
aberto. Foi por isso que propus a criação das Escolas de Espiritismo, em nível
universitário, dotadas de amplos currículos de formação cultural espírita.
Podem dizer que há contradições entre Mobral e nível
universitário. Mas, nota-se, que falamos de Mobral do Espírito. A Cultura
Espírita é o desenvolvimento da cultura acadêmica, é o seguimento natural da
cultura atual, em que se misturam elementos cristãos, pagãos e ateus. Para
iniciar-se na cultura espírita, o estudante deve possuir as bases da cultura
anterior. "Tudo se encadeia no Universo", como ensina, repetidamente,
O Livro dos Espíritos. Quem não compreende esse encadeamento, tem de iniciar
pelo Mobral. Não há outra forma de adaptá-lo às novas exigências da nova cultura.
A verdade nua e crua é que ninguém conhece Espiritismo.
Ninguém, mesmo, no Brasil e no Mundo. Estamos todos
aprendendo, ainda, de maneira canhestra. E se me permito escrever isto, é
porque aprendi, a duras penas, a conhecer a minha própria indigência. No
Espiritismo, como já se dava no Cristianismo e na própria filosofia grega, o
que vale é o método socrático. Temos, antes de tudo, de compreender que nada
sabemos. Então, estaremos, pelo menos, conscientes de nossa ignorância e
capazes de aprender. Mas, aprender com quem? Sozinhos, como autodidatas,
tirando nossas próprias lições dos textos, confiantes nas luzes da nossa
ignorância? Recebendo lições de outros que tateiam como nós, mas que estufam o
peito de auto-suficiência e pretensão? Claro que não. Ao menos isso devemos
saber.
Temos de trabalhar em conjunto, reunindo
companheiros sensatos, bem intencionados, não fascinados por mistificações
grosseiras e evidentes, capazes de humildade real, provada por atos e atitudes.
Assim conjugados, poderemos aprender de Kardec, estudando suas obras,
mergulhando em seus textos, lembrando-nos de que foi ele e só ele o incumbido
de nos transmitir o legado do Espírito da Verdade. Kardec é a nossa pedra de
toque. Não por ser Kardec, mas por ser o intérprete humilde que foi, o homem
sincero e puro a serviço dos Espíritos Instrutores. É o que devemos ter nas
Escolas de Espiritismo.
Não Faculdades, nem Academias, mas, simplesmente,
Escolas. O sistema universitário implica pesquisas, colaboração entre
professores e alunos, trabalho conjugado e sem presunção de superioridade de
parte de ninguém. O simpósio e o seminário, o livre-debate, enfim, é que
resolvem, e não o magister do passado. O espírito universitário, por isso
mesmo, é o que melhor corresponde à escola espírita. Num ambiente assim, os
Espíritos Instrutores disporão de meios para auxiliar os estudantes sinceros e
despretensiosos.
A formação espírita exige ensino metódico, mas, ao
mesmo tempo, livre. Foi o que os Espíritos deram a Kardec: um ensino de que ele
mesmo participava, interrogando os mestres e discutindo com eles. Por isso, não
houve infiltração de mistificadores na obra inteiriça, nesse bloco de lógica e
bom senso, que abrange os cinco livros fundamentais de Codificação, os volumes
introdutórios e os volumes da Revista Espírita, redigidos por ele durante quase
doze anos de trabalho incessante. Essa obra gigantesca é a plataforma do
futuro, o alicerce e o plano de um novo mundo, de uma nova civilização.
Seria absurdo pensar que podemos dominar esse vasto
acervo de conhecimentos novos, de conceitos revolucionários, através de simples
leituras individuais, sem método e sem pesquisa. Nosso papel, no Espiritismo,
tem sido o de macacos em loja de louças. E incrível a leviandade com que
oradores e articulistas espíritas tratam de certos temas, com uma falsa
suficiência de arrepiar, lançando confusões ridículas no meio doutrinário.
Temos de compreender que isso não pode continuar. Chega de arengas melífluas
nos Centros, de oratória descabelada, de auditórios basbaques, batendo palmas e
palavreado pomposo. Nada disso é Espiritismo. Os conferencistas espíritas
precisam ensinar Espiritismo - que ninguém conhece - mas para isso precisam
primeiro aprendê-lo. Precisamos de expositores didáticos, servidos por bom
conhecimento doutrinário, arduamente adquirido em estudos e pesquisas.
Expor os temas fundamentais da Doutrina, não é falar
bonito, com tropos pretensamente literários, que só servem para estufar
vaidade, à maneira da oratória bacharelesca do século passado. Esse palavrório
vazio e presunçoso não constrói nada e só serve para ridicularizar o
Espiritismo ante a mentalidade positiva e analítica do nosso tempo. Estamos
numa fase avançada da evolução terrena. Nossa cultura cresceu espantosamente
nos últimos anos e já está chegando à confluência dos princípios espíritas em
todos os campos. A nossa falta de formação cultural espírita não nos permite
enfrentar a barreira dos preconceitos para demonstrar ao mundo que Espiritismo,
como escreveu Humberto Mariotti, é uma estrela de amor que espera no horizonte
do mundo o avanço das ciências. E curiosa e ridícula a nossa situação. Temos o
futuro nas mãos e ficamos encravados no passado mitológico e nas querelas
medievais. Mas, para superar essa situação, temos de aprender com Kardec.
Os que pretendem superar Kardec, não o conhecem. Se
o conhecessem, não assumiriam a posição ridícula de críticos e inovadores do
que, na verdade, ignoram. Chegamos a uma hora de definições. Precisamos definir
a posição cultural espírita perante a nova cultura dos tempos novos. E só
faremos isso através de organismos culturais bem estruturados, funcionais,
dotados de recursos escolares capazes de fornecer, aos mais aptos e mais
sinceros, a formação cultural de que todos necessitamos, com urgência.
Texto de José Herculano Pires. O Mistério do Bem e
do Mal. 2ª edição
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