domingo, 24 de junho de 2012

COLLIGNON E “OS QUATRO EVANGELHOS”




No dia 25 de dezembro do ano de 1902, desencarnava, em Quimper, sede do Departamento de Finistère, a extraordinária médium francesa Emilie Collignon (Bréard, enquanto solteira). Foi através de suas faculdades, como se sabe e se agradece, que os evangelistas ditaram as explicações contidas na notável obra “Os Quatro Evangelhos” ou a “Revelação da Revelação”, posteriormente coordenada pelo bastonário bordelês Jean-Baptiste Roustaing.
Infelizmente, há muito pouco que dizer sobre a vida de Mme. Collignon, senão os escassos dados conhecidos e que reuni em meu livro inédito “A Posição Zero”. As grandes figuras, entretanto - particularmente quando lhes sobressai a humildade -, deixam sempre raros registros, cabendo à posteridade a pesquisa lenta e progressiva, até que se lhes levantem todos os contornos biográficos. É o mesmo caso das médiuns que funcionaram com Allan Kardec, cujas vidas continuam quase completamente desconhecidas.
De Mme. Collignon o que se sabe é que foi mãe de um dos prefeitos de Paris, que era médium mecânica e que, visitada por Roustaing, iniciou, a partir desse encontro, a sua abnegada missão de intermediária dos altos Espíritos que lhe ditaram a maior obra de todos os tempos, depois, logicamente, de “O Livro dos Espíritos”. Outros detalhes desse encontro se acham em meu livro e não pretendo antecipá-los. Este artigo é apenas uma homenagem espiritual à sua memória, menos para biografá-Ia do que para defender o seu trabalho, frequentemente arrastado à liça das acusações e invariavelmente criticado pelos que teimam em ver nele uma contradição com “O Livro dos Espíritos”. (Mais realistas que o rei, veem o que Kardec não viu ... ) Dentro dessa estratégia, intenta-se jogar Roustaing contra Kardec, e vice-versa. Assim, lembrando-me do 72º aniversário da desencarnação de Emilie Collignon, o que pretendo é destacar, uma vez mais, a sem-razão da campanha que visa ao impossível: contrapor um missionário ao outro.
Nessa ingente e primordial preocupação, os negadores de Roustaing iniciam a tarefa pela falsa e infundada afirmação de que Allan Kardec lhe opôs definitivas e peremptórias restrições. Muito já se tem provado em contrário; muito já se tem evidenciado que esse quadro não encerra absolutamente a verdade dos fatos. Não vou, portanto, retomar aqui os numerosos e lídimos argumentos que contrariam essas afirmações, a começar pela própria palavra do Codificador, através da qual, no vol. 6 da “Revue Spirite”, de junho de 1886, enaltece a obra de Roustaing, apresentando-a como “trabalho considerável e que tem, para os Espíritas, o mérito de não estar, em nenhum ponto, em contradição com a doutrina ensinada pelo Livro dos Espíritos e o dos Médiuns”.
A razão dessa controvérsia em torno do magno assunto decorre principalmente da posição tomada pelo missionário de Lyon na obra “A Gênese”, em que subscreve alguns comentários sobre a constituição do corpo de Jesus. É de se notar (pelo menos este argumento deve ser repisado) que aquela apreciação encerra ponto de vista pessoal de Kardec, à margem da Revelação Espírita (“O Livro dos Espíritos”). Kardec, que tinha por vezo consultar o Espírito São Luiz diante dos aspectos mais graves da Doutrina, àquele ensejo não o fez, furtando-se assim à oportunidade de ter ouvido do Alto ensinamento que talvez o levasse a esguardar o problema por outro prisma. De qualquer forma, apesar dos pesares, o que se depara em “A Gênese” não deveria levedar a dialética dos antifluidistas. Isto porque a asserção de Kardec é, antes que tudo, fruto duma série de condicionamentos, decorrente dos conhecimentos da época. Para Kardec, “fluídico” era sinônimo de “sombra” (vide “O Céu e o Inferno”, lª Parte, cap IV, n" 14); para Kardec, “fluídico” era o oposto de tangível (vide “O Livro dos Médiuns”, cap XVI, número 189, “Médiuns de Aparição”) ; para Kardec, “fluídico” não tinha a coesão da carne material (vide “A Gênese”, cap XIV, nº 36, e cap XV, nº 65). Ora, o adjetivo “fluídico”, excogitado por Roustaing, não tem nenhuma dessas acepções. “Fluídico” não é sombra, não está em oposição a tangível e, ao contrário, possui toda a coesão da carne material. Tais ilações, porém, só vieram à luz através das pesquisas de materialização que se inauguraram a partir de 1870, com Crookes, portanto, um ano depois da desencarnação do Codificador.
Seja como for, essas angulações, que não deveriam de forma alguma sequer propiciar a controvérsia, tal a clareza merídia que desborda dos próprios fatos em favor de Roustaing, é que têm servido de “leit-motiv” aos que demandam pôr em relevo um pretenso choque entre Kardec e Roustaing. E como é dessa pretensão que me proponho a tratar neste artigo, deixemos de lado os pontos e contrapontos da tese em si.
Por mais que se objetive menoscabar a obra de Roustaing, toda tentativa cairá no vazio, pois que não se atingem objetivos desse jaez quando se tem diante da vida um autêntico missionário. Os aguarentadores passarão; Roustaing continuará inesquecível e seu trabalho prosseguirá a iluminar as almas de boa vontade, oferecendo-lhas à meditação e ao respeito supremo a figura de Jesus, concebida em expressões de grandeza e pulcritude infinitas. Em contrapartida, por mais que se pretenda marear Kardec, dada a sua posição pessoal em face da natureza do Salvador toda tentativa se esfanicará no pauperismo da própria argumentação, pois que não se há de empanar a glória de quem reencarnou para restabelecer, com luta e dignidade, inteligência e mágoa, sofrimento e amor, o verdadeiro e primitivo Cristianismo!
Acusam-nos, a nós, por tanto crermos na “Revelação da Revelação”, de deixarmos que a pervicaz invicção desloque da primeira plana a singularíssima figura de Allan Kardec. Pigmeus que somos diante de tão augusto Espírito, jamais ousaríamos a absurda pretensão... Se às vezes revelamos entusiasmo, cremos ter ele a mesma medida daquele que o próprio Kardec sentiu quando entendeu a Terceira Revelação e... Foi criticado pelos que não queriam entendê-la. Ele, entretanto, bem há de a todos compreender e perdoar, porque no ádito de seu espírito perceberá por certo que, pelo menos de nossa parte, temos pretendido tão somente arrancá-lo dessa quadra de disputa contra Roustaing, em que errônea e insistentemente os negadores da “Revelação da Revelação” têm-no buscado situar. E, a nós, há de relevar também o ousio de apresentá-lo, embora sempre respeitosamente, no papel de quem, raciocinando em caráter pessoal, passara ao largo da realidade e discordou momentaneamente de Roustaing. Raciocínio que não vela a intensa luz que, permanente, lhe flui do Espírito altamente evolucionado; raciocínio que não há de bastar para que seja arriado das alturas a que vitoriosamente foi alçado, depois que aceitou a missão de codificar a Terceira Revelação e de dela ter-se saído galhardamente. Pobres desses pigmeus que são capazes, às vezes, de deslembrar que Allan Kardec é uma das mais extraordinárias encarnações de que a Terra tem notícia, e que sua obra, seu trabalho, simboliza o fanal inexaurível com que há mais de cem anos a humanidade tem podido aliviar as trevas da sua própria intimidade consciencial!
Napoleão Bonaparte estava se fazendo coroar como imperador do mundo quando renasceu em Lyon o missionário da Revelação Espírita. Sua vinda até nós evocou, então, a de 18 séculos antes, quando Roma pisava e estorcegava o mundo, e Jesus manifestou-se fluidicamente na manjedoura abandonada. Em ambas as ocasiões o processo histórico do nosso planeta era tumultuado e ninguém mais acreditava que alguém lhe pudesse pôr cobro aos abomináveis vitupérios. Em Roma, era o vício, a barbárie e a espoliação que grassavam; em Paris, era o materialismo, a descrença e a impiedade. Jesus restabelece a Verdade e abre às criaturas o caminho da esperança e da mais lídima vitória na imortalidade; Kardec restabelece o Cristianismo e enseja aos homens a solução para todos os seus problemas físicos, morais e espirituais!
Não importa que, vez por outra, apareça quem jogue combustível à fogueira do “estudo” sobre o corpo fluídico de Jesus; não importa, principalmente, que critiquemos o fortuito parecer pessoal do Codificador; não importa que se pretenda suscitar como “controvertida” (como se ao Espiritismo fosse infensa a controvérsia) uma questão para nós clara e óbvia, que nada tem de controvertida; não importa, finalmente, que se queira, através de Roustaing, minimizar a figura gigântea de Allan Kardec, ou, através de Kardec, apoucar a de Roustaing. Nada disso importa, porque Roustaing não será jamais esquecido e muito menos Allan Kardec descerá da posição de glória a que se alcandorou pelas únicas veredas que afinal justificam essa ascensão: a do trabalho, a da inteligência, a do sofrimento, a do dever cumprido e, acima de tudo, a da tolerância e do amor a amigos e inimigos. E nem Jesus deixará de ter tido um corpo fluídico, como estamos convictos.
A figura de Emilie Collignon me fez recordar toda essa infeliz colocação do estudo em torno da magistral obra por ela psicografada, na qual, bem assimilada, qualquer leitor encontrará, com incrível facilidade, palavras e lições do mais profundo respeito aos fundamentos filosóficos, científicos e religiosos que se contêm na Revelação Espírita, codificada por Allan Kardec. Bem haja, pois, a missão de Emilie Collignon.

Luciano dos Anjos
‘Reformador’ (FEB) Nov-Dez 1974

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